Neste fim de semana, “Torto Arado – O Musical” chega ao Cineteatro São Luiz entrelaçando música, corpo e espiritualidade para narrar feridas e resistências do Brasil profundo. Inspirado no romance de Itamar Vieira Junior, o espetáculo já foi visto por mais de 60 mil espectadores pelo País e traz ao Ceará celebração, reencontro e potência cênica
Sâmya Mesquita
samyamesquita@ootimista.com.br
Há espetáculos que passeiam por lugares; outros, porém, parecem retornar ao lugar de origem. “Torto Arado – O Musical” chega a Fortaleza assim: como se reencontrasse parentes distantes. A temporada a ser aberta neste fim de semana, no Cineteatro São Luiz, promete não apenas lotar plateias, mas também reativar memórias, acender espiritualidades e convocar o público para um mergulho sensorial na ancestralidade sertaneja. Afinal, trata-se de uma obra que se tornou fenômeno de público por onde passou e que chega ao Ceará trazendo o eco de mais de 60 mil espectadores, indicações ao Prêmio Shell e um coro coletivo que transcende o palco.
Baseado no romance premiado de Itamar Vieira Junior, o musical nasceu de um processo de criação que, segundo o diretor Elísio Lopes Jr., foi guiado pela própria energia da tradição afro-indígena. “As religiões de matriz africana e indígena cultuam a fé cantando e dançando. Então, foi a partir dos rituais e da nossa tradição que fomos encontrando a forma de contar essa história”, detalha Elísio. A adaptação, desenvolvida por ele ao lado dos dramaturgos Aldri Anunciação e Fábio Espírito Santos, permitiu que o livro ganhasse corpo e canto.
Ao mesmo tempo, as presenças do diretor musical Jarbas Bittencourt e do coreógrafo Zebrinha deram contornos sonoro e físico ao espetáculo. “Jarbas e Zebrinha entendem as minhas propostas e transformam em música e movimento. Sermos criadores pretos, baianos, nos possibilita uma sinergia de propósitos que se reflete na criação”, afirma o diretor. Daí nasce a força de um espetáculo que se move como reza, se ergue como ladainha e pulsa como território.
O corpo fala, o silêncio canta
No centro da narrativa, as irmãs Bibiana (Larissa Luz) e Belonísia (Bárbara Sut) enfrentam um acidente de infância com uma faca misteriosa e têm suas vidas interligadas para sempre. Encarnar essas mulheres, marcadas por silêncios e reinvenções, exigiu um mergulho profundo de ambas as atrizes. Larissa Luz conta que Bibiana transformou sua visão sobre ancestralidade. “Bibiana me fez compreender que falar de ancestralidade, violência e resistência no teatro musical não é só encenar, é escutar”, diz. Para ela, o musical brasileiro ganha densidade quando reconhece suas próprias feridas e suas próprias forças. “A resistência não grita o tempo inteiro. Às vezes ela sussurra, observa, planta”.
Já para Bárbara Sut, descobrir Belonísia foi, sobretudo, descobrir “a palavra do movimento”. “Qual pode ser o som desse corpo? Como esse corpo consegue se fazer comunicar? Foi um trabalho de travessia dos meus próprios silêncios”, evidencia a atriz. Ela descreve a personagem como uma presença que só existe por meio da troca: “É uma personagem que me faz pensar sobre presenças expandidas, coletivas. O musical fortalece muito essas noções de coletividade”.
Para o Brasil

Com 22 artistas em cena, “Torto Arado – O Musical” é também um manifesto sobre a potência do coletivo. Nos bastidores e no palco, o espetáculo se organiza como um quilombo criativo. “A cultura tem que estar entre os direitos básicos. Que bom que essa peça pode viajar e chegar para quem nem sempre tem acesso”, afirma Bárbara Sut. Ela reforça a importância de levar o musical para além do eixo Rio–São Paulo e destaca a recepção calorosa de outras regiões. “É fundamental que as pessoas possam se ver representadas e, a partir daí, pensar em outros Brasis possíveis”. Larissa Luz concorda: “Cada cidade acrescenta uma camada ao espetáculo. ‘Torto Arado’ não fala sobre o Brasil, mas com o Brasil”.
Para o diretor Elísio Lopes Jr., a passagem pelo Ceará tem sabor de retorno ao lar. “A felicidade de todos nós estarmos em Fortaleza é a certeza de que estamos em casa. O Nordeste é um corpo vivo, criativo e acolhedor”, ressalta. A temporada marca o encerramento do calendário de apresentações de 2025, antes de uma nova retomada no próximo ano.
Ainda sobre a temporada no Ceará, Larissa Luz compartilha a expectativa pelas apresentações vão até domingo (7): “É uma terra de memória forte, de espiritualidade pulsante, de narrativa própria de resistência. Espero troca, verdade. Estou curiosa para sentir como o Ceará vai acolher Bibiana”. E, no fim, há ainda o momento que a Larissa considera o coração do espetáculo: o discurso final de Bibiana. “É quando a musicalidade deixa de ser trilha e passa a ser território. O muro entre nós e a plateia cai. É ali que sinto que Bibiana se revela inteira, entre o chão e o invisível”, finaliza.



















