Ovacionado em Cannes, “O Agente Secreto” é um grito contra o esquecimento e um marco incontornável do cinema brasileiro

Concorrendo à Palma de Ouro em Cannes, o longa brasileiro O Agente Secreto marca a primeira parceria entre o diretor Kleber Mendonça Filho e o ator Wagner Moura. Saiba o que esperar do filme que deve chegas às telonas ainda em 2025

Gabriel Amora
amoragabriel@ootimista.com.br

Em O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, exibido em Cannes no último fim de semana, há um momento de silêncio absoluto. No centro da cena, o personagem vivido por Wagner Moura lê uma carta de alguém que teme esquecê-lo no futuro, o que, talvez, seja o ponto mais emocional do filme — e também o mais simbólico, dado que a nova obra do cineasta pernambucano é, acima de tudo, um grito pela preservação da memória, seja individual ou coletiva.

Na sessão do Grand Théâtre Lumière, para mais de 2.000 pessoas, a reação foi reverente. Após o barulho contagiante do frevo no tapete vermelho, o que se viu foi um público entregue à escuta. Riu-se quando era preciso, suspirou-se quando o suspense apertava. Foi um momento espiritual, pode-se dizer, não só entre brasileiros, mas franceses, norte-americanos, espanhóis, ingleses e por aí vai.

Ambientado nos anos 1970, em plena ditadura militar, o longa acompanha a trajetória de um homem tentando escapar de seu passado. Ele decide, então, esconder-se em Recife e descobre que está sendo perseguido por inimigos do sudeste.

Como uma oportunidade única, Kleber filma o Recife de suas memórias com paixão: uma cidade viva, vibrante, onde cada esquina pulsa cor, música e história. O Cinema São Luiz aparece como um altar da resistência cultural, enquanto pensões e becos se tornam refúgios para os perseguidos. É um Brasil raro no cinema atual — acolhedor, contraditório, tenso e, ainda assim, belo.

A força do elenco é outro pilar da obra. Cada personagem poderia, inclusive, protagonizar seu próprio filme, pois a construção de cada um é fantástica. Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Robério Diógenes e Alice Carvalho (em uma cena que já nasce clássica) entregam performances humanas, difíceis de encontrar. A direção e o elenco parecem respirar em perfeita sintonia. KMF exibe, mais uma vez, a sua habilidade em encontrar um bom time de atores.

Não só isso: com quase três horas de duração, a obra também surpreende pela fluidez. As múltiplas camadas narrativas se entrelaçam com precisão, sem perder o ritmo ou cair em excessos. Mérito também da montagem afiada de Matheus Farias, que organiza espionagem, erotismo, suspense e política com uma costura assustadoramente natural. Tudo é conectado de uma maneira muito simples, ao mesmo tempo que robusta. Basta observar as três narrativas e os seus encontros imprevisíveis próximo do fim.
Felizmente, todas as subtramas são provocadoras, como a que envolve um tubarão e uma perna desaparecida. A referência ao filme Tubarão, de Spielberg, é clara — mas aqui é absorvida pelo imaginário pernambucano, ganhando contornos folclóricos e políticos. O terror vira sátira, a repressão vira metáfora. O riso que escapa é desconcertante; a crítica, neste caso, afiada.

Por fim, Wagner Moura entrega uma de suas atuações mais potentes — e, talvez, sua melhor performance vocal no cinema. Kleber o dirige como ninguém havia feito: explorando sua oratória como instrumento de narrativa. Seu personagem é a ponte entre o indivíduo e o coletivo, entre o passado e o presente. É por meio dele que o filme reafirma: preservar a memória é preservar a vida. Wagner, sabendo disso, entrega-se ao melodrama, sem soar repetitivo e exaustivo. É uma performance que absorve os problemas do mundo para depois enfrentá-los, um dos elementos que justificam, por exemplo, a minutagem do longa.

O Agente Secreto é mais que um filme; é um acontecimento. Está, merecidamente, entre os favoritos à Palma de Ouro. Mas, independentemente do prêmio, o Brasil já saiu vencedor. Temos uma obra que consegue marcar este 2025 e resgatar com força a década de 1970 — um período que jamais pode ser ignorado, já que o esquecimento é, em si, uma forma de censura. E o cinema, como arte coletiva e histórica, é um meio poderoso de manifesto e lembrete para que não aconteça novamente.

O resultado da Palma de Ouro sai no último dia de Festival, no sábado (24). Até lá, O Agente Secreto será exibido mais cinco vezes.

Coletiva 

Na coletiva de imprensa dos filmes Eddington e Die My Love, o cansaço dos astros era visível. Após a premiére, os protagonistas ainda teriam de enfrentar uma maratona global: entrevistas, críticas e turnês. Em Eddington, curiosamente, o foco da conversa desviou do próprio filme, enquanto, em Die My Love, embora a narrativa tenha sido abordada, o encontro começou com atraso e terminou antes do previsto — os atores deixaram o local apressadamente, sem interagir com os fãs.

Com O Agente Secreto, a história foi completamente diferente. A equipe brasileira chegou pontualmente à coletiva, preparada e disposta a dialogar em português, inglês, francês e espanhol. Kleber Mendonça Filho, Wagner Moura e resto do elenco atenderam às perguntas de jornalistas brasileiros e estrangeiros com simpatia, bom humor e, como era de se esperar, reflexões políticas — uma marca constante do cinema do diretor pernambucano.

“O Brasil sofre de amnésia. Comete todo tipo de violência e depois passa um pano para si mesmo”, disparou Kleber logo no início. “Nosso filme fala disso. Não é sobre ‘seguir a vida’ ou ‘tocar o barco’. A memória é central em O Agente Secreto. Quando comecei a trabalhar em Retratos Fantasmas, essa ideia se fortaleceu ainda mais”, explanou.

Ele destacou, inclusive, a coincidência simbólica de, em um mesmo ano, o país ter produzido dois filmes sobre memória histórica: O Agente Secreto e Ainda Estou Aqui, de Walter Salles — este último premiado com o Oscar de Melhor Filme Internacional. “São filmes irmãos, ainda que muito diferentes. Compartilham uma frequência emocional parecida, um sentimento profundo em relação ao país durante a ditadura”, avaliou.

Em resposta ao O Otimista, Kleber comentou também sobre as referências estéticas de seu novo longa. “A paranoia está no DNA do cinema, de forma geral. Claro que há ecos de Steven Spielberg, John Carpenter e outros norte-americanos dos anos 1970. Mas O Agente Secreto bebe muito da energia do cinema brasileiro daquela época — de cineastas como Hector Babenco, Jorge Bodanzky e tantos outros que filmaram a tensão e problemas do país”, detalhou.

Já Wagner Moura, protagonista do longa, afirmou ao O Otimista com carinho que espera voltar a trabalhar com Kleber em breve. “Ele faz os roteiros no tempo dele, em um tempo um pouco mais lento, o processo dele é assim, e tudo bem. Vou esperar pacientemente”, brincou. “Além do prazer de trabalhar com um artista gigante, tem algo ainda mais raro: a alegria de filmar com um grande amigo”.

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