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Denise Mattar: “Apreciar obras de arte é um aprendizado que tem que começar cedo”

Com atuação em importantes equipamentos culturais no eixo Rio/São Paulo, a curadora Denise Mattar está à frente da exposição Elas – De Musas a Autoras, em cartaz na Unifor. Ao O Otimista, ela detalha caminho nas artes e principais feitos até chegar ao Ceará, além de apontar percurso feminino nas artes e gargalo para promoção do acesso à arte no Brasil 

Danielber Noronha

danielber@ootimista.com.br

Os mais de 30 anos dedicados à arte tornaram Denise Mattar uma referência na curadoria em Artes Plásticas no Brasil. O percurso, porém, exigiu dela assertividade e firmeza para estar, por muito tempo, em lugares ocupados majoritariamente por homens. Na bagagem, carrega atuações em equipamentos de valor ímpar à cultura brasileira, tais como o Museu da Casa Brasileira (MCB) e os Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em Fortaleza, já esteve à frente de duas exposições feitas em parceria com a Fundação Edson Queiroz e, recentemente, inaugurou a mostra Elas – De Musas a Autoras, em comemoração aos 50 anos da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Exposição reúne 150 obras, com trabalhos de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Lygia Clark e muitas outras figuras femininas. O trabalho, desmistifica Denise, é embutido de muitas outras camadas além de selecionar as obras a serem expostas. Segundo ela, é preciso criar um caminho convidativo ao visitante – especialmente em um lugar onde a cultura de consumir arte ainda é pouco difundida. “As obras têm que dialogar entre elas. E como uma mostra só tem sentido se for vista, procuro criar formas para que o público se sinta acolhido. Para isso, crio divisões em núcleos, textos acessíveis e um percurso quase como um roteiro de cinema”, detalha. Em entrevista ao O Otimista, a curadora reforça a importância de revisitar o legado da mulheres nas artes, como forma de dá-las o devido protagonismo, apagado ao longo da história, além de traçar um panorama do consumo de arte no País e uma das saídas para fazer o povo brasileiro se apoderar de maneira mais significativa de seus patrimônios artísticos. “A educação é, sem dúvida, a mola mestra da difusão da arte”, pontua.

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(Foto: Divulgação/Ares Soares)

O Otimista – Como se deu a entrada da senhora no campo das artes?
Denise Mattar – Sempre gostei de artes desde pequena, e por isso, bem jovem, comecei a trabalhar em galerias. Tive a sorte de trabalhar no Rio de Janeiro com Franco Terranova, dono da Petite Galerie, um marchand muito especial, amigo dos artistas. Depois trabalhei com Walmir Ayala, um crítico de arte muito conhecido. Tive também a oportunidade de trabalhar como assistente de cenografia de Lina Bo Bardi. Minha escola foi informal, mas de muita qualidade.

O Otimista – E a curadoria enquanto profissão chegou em que momento?
Denise – O termo curadoria começou a ser mais usado aqui no Brasil por volta dos anos 1980, mas antes disso a função era exercida com outros nomes. Em 1985 fui convidada por Roberto Duailibi para trabalhar com ele no Museu da Casa Brasileira [MCB], para o qual ele havia sido indicado como presidente. Lá, embora com o nome de diretora técnica, exercia, na prática, a função de curadoria. Assim, encaminhei o Museu para a tipologia de Design, batalhei para a criação do Prêmio Museu da Casa Brasileira, que existe até hoje, criei exposições emblemáticas como Cadeira, Evolução e Design, e recebi outras como Morada Paulista, de Maria Alice Milliet. Em 1987 ganhamos o prêmio do ICOM – International Council of Museums como museu revelação. Com a mudança do governo, Duailibi decidiu sair do museu e fui imediatamente convidada a ser diretora técnica do Museu de Arte Moderna de São Paulo [MAM], onde permaneci por dois anos. De lá, fui trabalhar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro [MAM Rio], como Coordenadora de Artes Plásticas, onde exerci essa função por sete anos. A partir de 1997 decidi trabalhar como curadora independente, e realizei, no Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB], uma trilogia de centenários: Di Cavalcanti, 1997, Flávio de Carvalho, 1999, e Ismael Nery, 2000. Com essas mostras recebi os prêmios da Associação Brasileira de Críticos de Arte [ABCA] e também da Associação Paulista de Críticos de Arte [APCA]. E preferi não mais voltar a ser fixa de nenhuma instituição, podendo escolher os artistas que me interessavam.

O Otimista – O que a senhora leva em consideração na hora de fazer uma curadoria? Quais elementos não abre mão ao montar uma exposição?
Denise – Um dos elementos principais para mim é trazer algo novo: um artista esquecido pelo circuito, ou uma nova visão sobre alguém bem conhecido. Isso exige uma pesquisa cuidadosa, que é o alicerce de uma boa curadoria. Aí vem a parte difícil, pois fazer uma curadoria é selecionar, e no final temos que escolher o que não vai ser mostrado. Uma curadoria é um ensaio visual, portanto tenho sempre em mente, desde o início, o espaço no qual a exposição será apresentada. As obras têm que dialogar entre elas. E como uma mostra só tem sentido se for vista, procuro criar formas para que o público se sinta acolhido. Para isso, crio divisões em núcleos, textos acessíveis e um percurso quase como um roteiro de cinema. Na ocupação do espaço, junto com o designer de montagem, utilizo cores, som e luz para que a visita seja prazerosa e envolvente.

O Otimista – A senhora já realizou mostras retrospectivas de grandes artistas, como Anita Malfatti e Di Cavalcanti. O que fica de aprendizagem ou de mais significativo após estes mergulhos na obra de nomes consagrados?
Denise – O mergulho na pesquisa que faço a cada exposição sempre revela coisas novas e ajuda a desfazer visões cristalizadas. Di Cavalcanti, por exemplo, era um ótimo escritor, e ler seus livros, Viagem de Minha Vida (1955) e Reminiscências Líricas de um Perfeito Carioca (1964), foi fundamental para conhecer melhor a sua obra. Com Anita, descobri que, afinal, ela não se abalou tanto com a crítica de Monteiro Lobato e que ilustrou vários livros para a editora dele, após 1917. Muito mais marcante para Anita era o defeito físico que tinha na mão direita. As pessoas não se dão conta de que ela pintava com a mão esquerda, um exemplo de superação que passa batido, diante do papel de vítima com o qual ela foi etiquetada.

O Otimista – Durante a profissão, teve fortes atuações em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Fortaleza. Como percebe a fruição da arte nestas três metrópoles?
Denise – Apreciar obras de arte é um aprendizado, que tem que começar cedo e que passa pela cidade ter equipamentos acessíveis e com boa programação. Apesar de estar num mau momento, o Rio de Janeiro é uma cidade que tem ótimos museus, uma oferta constante de boas exposições, e que costuma bater recordes de visitação quando cai no gosto do público. O boca a boca é muito eficiente lá! São Paulo é mais difícil, porque a oferta é muito grande, pulverizando a participação do público. Mas o trabalho constante da Pinacoteca, do Masp, do MAC-USP e do MAM-SP, entre outros, garante que sempre há algo de novo e interessante para se ver. A recente abertura da Pinacoteca em Fortaleza é auspiciosa, assim como a excelente coleção da Fundação Edson Queiroz, mas acho que deveria haver um maior investimento público, por exemplo, no Mauc, um museu que tem conjuntos de obras espetaculares, de artistas cearenses como Raimundo Cela, Antônio Bandeira e Aldemir Martins.

O Otimista – Tratando especificamente de Fortaleza, como a cidade se posiciona em relação ao mercado de arte nacional? Está em um patamar ok ou ainda é necessário avançar?
Denise – De forma geral acho que o público cearense ainda está começando a dar valor às instituições locais. E sempre recomendo que, antes de pegar o avião para ver exposições em São Paulo, vejam o que está acontecendo na Cidade.

O Otimista – Tratando especificamente sobre a exposição Elas – De Musas a Autoras, pode começar detalhando como foi o processo de construção dessa mostra?
Denise – Recebi um convite da Fundação Edson Queiroz para fazer mais uma exposição com a coleção, pois já realizei duas: Da Terra Brasilis à Aldeia Global e 50 Duetos. Nesse processo, já havia me chamado atenção o número de artistas mulheres que integram a coleção. Mais do que isso, grande parte delas é muito bem representada por um conjunto de obras de várias fases. A partir disso pensei em fazer uma exposição reunindo essas artistas e dei o título de Elas, que, aliás, já foi usado numa exposição no Centro Pompidou em 2009. As mulheres no Brasil só entram, de fato, no circuito artístico a partir do Modernismo, isto é na década de 1920, mas entram com força, através da presença de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. É digna de nota o grupo de artistas abstratas que inclui grandes nomes como Judith Lauand, Lygia Clark, Lygia Pape, Tomie Ohtake, Mira Schendel. Chegando à contemporaneidade, temos as internacionalmente reconhecidas Adriana Varejão e Beatriz Milhazes. Há, ainda, um grupo de artistas cearenses Nice Firmeza, Heloysa Juaçaba, Letícia Parente, Beatriz Fiúza, Jane Sandes, Côca Torquato, Ana Cristina Mendes, Ana Costalima, Paula Souza e Waléria Américo.

O Otimista – Qual o aspecto mais interessante dessa mostra?
Denise – Uma das características mais importantes da coleção é o seu arco temporal, que vai desde os artistas holandeses até a contemporaneidade. Achei importante mostrar esse aspecto da coleção, e, por isso, resolvi incluir as representações das mulheres pelos artistas homens. Assim delineou-se o subtítulo da exposição: De Musas a Autoras

O Otimista – Ainda neste sentido, o que o público visitante irá encontrar ao passear pelo Espaço Cultural Unifor?
Denise – Os dois módulos estão organizados cronologicamente, e o visitante verá, tanto em Musas, quanto em Autoras, um percurso da arte brasileira. Musas se inicia com retratos da família real, entra pelo Modernismo, com obras de Di Cavalcanti, Portinari, Ismael Nery, Brecheret, Cícero Dias, entre outros, e segue até a chegada da abstração, quando não mais usando a figura, os artistas deixam de representar a mulher. Já no módulo Autoras, que se inicia no Modernismo, temos uma presença importantíssima do Abstracionismo, tornando os módulos complementares, do ponto de vista da história da arte.

O Otimista – No olhar da senhora, qual a importância de fazer esse resgate de mulheres que, por tanto tempo, foram apagadas dos momentos históricos das civilizações?
Denise – Creio que o aspecto mais importante dessa revisão da presença da mulher nas artes é ver que a qualidade das artistas nada deixa a desejar à produção masculina. Hoje, felizmente, vivemos um momento especial nas artes plásticas, que, sem divisões em movimentos e categorias, mesclam técnicas e temas, promovendo a inteira liberdade de expressão. O que conta agora são elementos como: qualidade, originalidade e força de uma obra – independente do sexo do artista que a gerou.

O Otimista – Enquanto uma curadora renomada, atuando em equipamentos de grande porte no País, também já houve situações onde as estruturas sociais machistas tentaram barrar a senhora?
Denise – Sou uma pessoa bastante assertiva e, talvez por isso, nunca sofri muito com as estruturas machistas, entretanto, durante muito tempo fui a única mulher a integrar a lista dos curadores mais atuantes. Hoje também isso foi superado.

O Otimista – A Unifor está fazendo 50 anos e tem forte contribuição na democratização das artes em Fortaleza. Qual a importância dessa ponte entre as entidades de ensino e a difusão da arte?
Denise – Fazer 50 anos é uma vitória para uma universidade no Brasil, principalmente fora do eixo Rio-São Paulo, e atingindo excelência! A educação é, sem dúvida, a mola mestra da difusão da arte. O fato da Fundação ter uma coleção tão significativa é um motivo de orgulho para a sociedade cearense, ainda mais acrescido do fato de a Unifor oferecer exposições gratuitas e com serviço educativo de qualidade.

O Otimista – Fortaleza tem ganhado vários equipamentos culturais. Na visão da senhora, a cidade está bem assistida neste quesito?
Denise – Existe uma barreira histórica que é a do acesso à arte, especialmente em lugares tidos como “elitizados” ou “inacessíveis” a uma parte da população. O que precisa ser feito para romper essa barreira?  Essa barreira só pode ser rompida com educação. Na Europa, as crianças são levadas aos museus desde bem pequenas. No início, só entram no espaço, ficam pouco tempo e saem com as escolas, e assim vão se habituando a um espaço grande e silencioso. Voltam sempre e, com isso, incorporam o espaço museológico às suas vidas. Aqui, infelizmente, esbarramos na falta de recursos que impede as escolas públicas de alugar um ônibus e deslocar as crianças. Nas escolas privadas, o problema é diferente, pois há recursos, mas não há o hábito. Só esse tipo de ação romperia com essa barreira. Infelizmente, parece que ainda estamos longe de conseguir isso.

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