Crítica: Sandman, da Netflix, está entre a expectativa dos fãs e a surpresa dos leigos

‘Sandman’ é a obra-prima do britânico Neil Gaiman. Entenda por que a adaptação está sendo tão aclamada

Sâmya Mesquita
samya@ootimista.com.br

Na última sexta-feira, 5, a Netflix lançou a série ‘Sandman’, baseada na HQ do escritor britânico Neil Gaiman. Acompanhando a onda de lançamentos fantásticos, como ‘A Casa do Dragão’ da HBO e ‘Os Anéis de Poder’ da Amazon, Sandman é muito mais que uma adaptação. Aguardada há mais de 30 anos pelos fãs, a magnum opus de Gaiman é crítica social ferrenha antes mesmo disso virar moda.

‘Sandman’ é vista como a obra-prima de Neil Gaiman, apesar dele ter escrito diversas outras histórias de sucesso, como ‘Coraline’ e ‘Deuses Americanos’. E a série da Netflix não foi sua primeira tentativa de adaptação: o autor demorou quase 30 anos para que uma proposta de produção fosse ousada o suficiente para englobar todo o universo da história. Agora, como produtor ao lado de Allan Heinberg (Mulher-Maravilha) e David S. Goyer (Batman: O Cavaleiro das Trevas), Gaiman conseguiu trazer a grandiosidade de Morpheus em 10 episódios que parecem ter agradado tanto os fãs da HQ quanto o público em geral.

Mas vamos entender um pouco desse Perpétuo, o Morpheus, e por que a adaptação está sendo tão aclamada.

HQ é literatura

A lenda do ser que coloca areia nos olhos dos mortais para um bom sono foi adaptada pelo britânico Neil Gaiman ainda em 1988 para uma HQ que duraria oito anos para ser finalizada. Os 75 volumes de ‘Sandman’ lançados pela Vertigo, selo adulto da DC Comics, levaram para casa mais de 20 prêmios Eisner, o “Oscar” dos quadrinhos. E isso não foi à toa: Gaiman foi um dos responsáveis por tirar o estigma de que quadrinhos não são literatura e que apenas podem ser consumidas por crianças. Junto ao mago Alan Moore, criador de Watchmen, trouxeram um tom sombrio às histórias ilustradas e mudaram para sempre sua compreensão.

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Os 75 volumes de ‘Sandman’, de Neil Gaiman, levaram para casa mais de 20 prêmios Eisner, o “Oscar” dos quadrinhos. (Foto: Reprodução/Instagram)

Sonho, conhecido como Sandman, Morpheus e diversas outras alcunhas, é o monarca responsável pelo Sonhar, uma dimensão da qual todos os humanos vão quando dormem. Lá também é a origem dos sonhos mais profundos da alma, que movem a humanidade. Sandman é um dos Perpétuos, seres que existem desde a criação do Universo, e irmão de Destino, Morte, Desejo, Desespero, Destruição e Delírio.

‘Sandman’ acabou se tornando queridinha dos fãs de graphic novels devido à profundidade dos temas: desde os paralelos históricos, como a retratação de William Shakespeare e Júlio César, até certa crítica social escancarada. E esta crítica foi além dos questionamentos niilistas do mundo contemporâneo. Gaiman sempre trouxe temas voltados à representação de diversos grupos em suas histórias: LGBTs, pessoas racializadas e até imigrantes.

Adaptar vai além de transcrever

Adaptação nunca é algo fácil. Mesmo uma HQ, que já traz elementos gráficos “prontos”, tem características próprias que, em outra mídia, não fariam sentido. A linha de tempo que divide um quadro de outro é bem diferente do que diferente de um corte de cena. Neil Gaiman sabia disso e fez questão de participar da produção da adaptação da Netflix.

Apesar de sabermos que uma adaptação nunca pode (nem deve) ser igual ao material original, é de pensamento comum buscar uma certa “fidelidade” ao texto original. Um exemplo é o modo como a crítica amou ‘Apocalypse Now’ (1991) e odiou ‘Percy Jackson e o ladrão de Raios’ (2010). Claro que há motivos para a obra de Coppola ser ovacionada e a de Chris Columbus ser esquecida. Mas uma boa adaptação vai além de apenas reproduzir uma boa sequência de falas: é também atualizá-la e torná-la compreensível em dias atuais. E ‘Sandman’ trouxe isso com perfeição.

A fotografia da série fez questão de trazer os mesmos elementos e até os mesmo ângulos das ilustrações originais. As falas de impacto importantes para o enredo também são as mesmas. Entretanto, muitos fãs reclamaram nas redes sociais acerca da caracterização dos atores, que personagens como a Morte, interpretada pela atriz Kirby Howell-Baptiste, deveriam ser brancos, e não negros. Até questionou-se a escalação de Mason Alexander Park, não binárie, para interpretar Desejo.

Novo Projeto
A fotografia de ‘Sandman’ fez questão de trazer os mesmos elementos e até os mesmo ângulos das ilustrações originais. (Foto: Reprodução)

Esqueceu-se, contudo, da atualização de Gaiman em ‘Deuses Americanos’ quando a Mídia, que à época do livro era apenas a TV, nas temporadas posteriores virou as redes sociais. A atualização trouxe à adaptação uma proximidade com o público que não teve contato com a leitura. Caso semelhante acontece de forma mais rasa, por exemplo, em O Rei Leão, releitura infantil e mais próxima de Hamlet.

O fato é que Sandman atualiza a obra sem perder a magia de um personagem gótico dos anos 80. Inclui Rose Walker como pessoa negra e Johanna Constantine como mulher sem perder a qualidade narrativa. Retrata relações atemporais como a menina lésbica – e suas questões de relacionamento – na cafeteria e um Perpétuo não binário – afinal, “Desejo não tem gênero”.

Mesmo assim, muitos espectadores da série tomaram as redes sociais com críticas, dizendo que, com o boom da representatividade nas produções artísticas, ‘Sandman’ quer tomar um pouco da fatia do “pink money”. O que nos leva a pensar que, apesar do primor na adaptação da HQ para a série, alguém sempre ficará insatisfeito.

Tudo se trata de uma fantasia. Por mais que você creia na Morte como criatura antropomórfica, ela não está presente em todos os povos? E Caim e Abel com feições indianas não seria uma representação mais que necessária num país que segrega essa população, como a Grã Bretanha?

Montanha russa de sentimentos (com spoilers)

A série adapta “Prelúdios e noturnos” e “A casa das bonecas”, os dois primeiros arcos da HQ. A história começa em 1916, quando uma antiga ordem ao estilo Golden Dawn, que tentava capturar a Morte, priva o Senhor do Sonhar da liberdade e de seus três objetos de poder – a algibeira, o elmo e o rubi. Após quase um século aprisionado no porão de seu algoz, até que consegue escapar. A partir daí, o Perpétuo precisa consertar o mal que se abateu no Sonhar e no mundo dos despertos graças à sua captura, além de passar os próximos episódios tentando recuperar seus pertences e sua identidade.

Como adapta dois arcos, a série tem dois momentos distintos. No primeiro, é uma crescente do reencontro de Sonho consigo mesmo, ao mesmo tempo que entendemos a dimensão do seu poder. Os personagens que aparecem nos primeiros seis episódios tem uma íntima relação com a prisão de Morpheus. Já no segundo arco, ainda existe essa relação, mas é um pouco mais distante, menos etérea. É quando conhecemos os impactos indiretos do ritual de aprisionamento.

Nesse primeiro escopo, enquanto Morpheus tenta reaver seus pertences, somos levados a mundos diferentes: a solidão de Johanna Constantine, que lida com as sombras todos os dias; os sonhos que resistem ao Inferno, quando Sandman se encontra com Lúcifer; os terrores que a mente humana é capaz de proporcionar, quando os sonhos são perdidos.

Vale falar especificamente do quinto episódio, que aparece em formato de bottle episode, quando a história acontece em um único cenário. Enquanto a HQ captura os embates dos personagens como fotografias grotescas, a série dá uma linha temporal quase plausível, para que as mortes aconteçam. E é aqui que temos a real dimensão do poder de Sandman e como ele é essencial para a vida dos humanos mesmo quando estão despertos.

Após isso, vem o sexto episódio, que para mim é a primazia da obra de Neil Gaiman. Não lembro de um episódio que tenha me impactado tanto e, com certeza, valeu todas as decepções que a DC Comics tem trazido aos fãs nos últimos tempos. Aqui, Sonho encontra sua irmã, a Morte, que o ajuda a entender seu real propósito como Perpétuo enquanto faz o seu trabalho de Ceifadora. Encontramos um velho judeu em seus últimos momentos fazendo Arte, um recém casado preocupado com a esposa e até um bebê que mal experimentou a vida. E nós, espectadores – incluindo o próprio Sonho, vendo o trabalho da irmã -, passamos a entender que o trabalho da Morte não é o fardo contínuo. Ela tem companhia, a nossa. E nós, mortais, estamos com ela no fim. Em tempos como o que vivemos, essa mensagem se torna ainda mais sublime, principalmente para aqueles que sabem o que é o luto.

Ainda no sexto episódio, Sonho conhece Hob Gadling, o humano que se recusa a morrer e, com ele, tem uma amizade que dura mais de seis séculos, enquanto a humanidade “evolui” e vive os mesmos problemas. É interessante que essa concepção aconteça depois de mostrar a inefabilidade da morte e nos faz questionar, de fato, quem é mais poderoso: o Perpétuo ou o humano. Aqui conhecemos o jovem William Shakespeare e a real solidão de Morpheus, tornando a narrativa pronta para a segunda parte da série.

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Sandman conhece Hob Gadling, o humano que se recusa a morrer. (Foto: Reprodução/Netflix)

A partir do sétimo episódio, toda a compreensão que temos de Morpheus como um “pobre garoto triste” é quebrada, pois suas escolhas não se mostram éticas. O ritmo da narrativa decresce, estagna e torna os episódios mais maçantes. Não que a história seja ruim – além disso, é importante para o que ainda virá, numa possível segunda temporada. Mas episódios tão fora da curva como o cinco e o seis fazem quaisquer outros ficarem apagados.

Mas sendo bem sincera, A Casa das Bonecas não é um dos arcos favoritos dos fãs, de qualquer forma…

Somadas a atuações incríveis e roteiro milimetricamente pensado, a série encerra com um poderoso gancho com o que ainda deve vir de Lúcifer e o Inferno. Mas esse spoiler vai ficar pra quem ficar curioso e quiser ter a experiência de ler as HQs.

Mundo apresentado, personagens em seus devidos lugares, agora é esperar a segunda temporada que, apesar de ainda não estar confirmada, já está sendo escrita. E se depender do hype e dos memes, ‘Sandman’ será, de fato, um novo fenômeno fantástico da atualidade.

Nota: 9/10

Confira o trailer:

 

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