Comemorando 68 ano, Grupo Comédia Cearense apresenta espetáculo “O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues

Um beijo que vira escândalo, uma mentira que destrói vidas: o clássico “O Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, ganha montagem inovadora pelo Grupo Comédia Cearense. Com trilha sonora ao vivo de Ricardo Bacelar e direção cinematográfica de Hiroldo Serra, a peça revela que temas dos anos 1960 seguem atuais

Sâmya Mesquita
samyamesquita@ootimista.com.br

Um beijo. Um simples gesto humano que desencadeia uma tragédia. Assim começa “O Beijo no Asfalto”, obra-prima de Nelson Rodrigues (1912-1980) que ganha nova montagem pelo Grupo Comédia Cearense no Teatro Nadir Papi Saboya, em temporada aos sábados do mês de maio. A peça promete sacudir o público com sua mistura de drama, polêmica e atualidade surpreendente.

A Companhia resolveu montar “O Beijo no Asfalto” para comemorar os 68 anos de atividades ininterruptas do grupo, mas também marca os 60 anos da primeira montagem dessa mesma peça, encenada em 1964 sob direção de Haroldo Serra, pai do atual diretor, Hiraldo. “Naquela época, minha mãe estava grávida de mim e não pôde participar. Infelizmente não ficou nenhum registro fotográfico ou depoimento”, revela Hiroldo Serra.

A abordagem cinematográfica é a grande novidade desta versão. “Quisemos criar um espetáculo que mistura teatro, cinema e televisão. Acredito que mantemos a mesma essência, mas com linguagem atualizada”, explica o diretor. A iluminação expressionista de Rayan Monteiro e os figurinos de época completam a atmosfera que transporta o público para os anos 1960 sem perder a conexão com o presente.

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A trama conta a história de Arandir (Roberto Reial), que, ao beijar um moribundo atropelado, se torna vítima de um escândalo midiático que, para os olhos acurados, se mantém impactante na atualidade. “A peça aborda fake news, abuso de poder, machismo e homofobia, temas tão relevantes hoje quanto nos anos 1960”, destaca Serra.

No centro do furacão está Selminha, interpretada por Manoela Bacelar. “Ela é uma jovem que vê seu casamento idealizado desmoronar por causa de um boato”, explica a atriz ao Tapis Rouge. “A personagem vive todos os estágios do luto de um relacionamento, da negação à raiva”.

Já Márcia Sucupira, no papel de Dália, vê na obra um retrato da sociedade atual. “Dália prefere viver através da vida alheia do que buscar sua própria felicidade – algo que as redes sociais potencializaram hoje”, analisa. “Vivemos numa era onde a vida dos outros parece mais interessante que a nossa”.

Roberto Reial destaca a genialidade de Nelson Rodrigues na construção de Arandir: “Nelson escancara hipocrisias que ainda assombram nossa sociedade. Montar seus textos é sempre um desafio artístico e político”. O ator revela que uma das cenas mais intensas é seu confronto com o sogro Aprígio (Ildo Mota): “É como um acerto de contas que expõe todas as máscaras sociais”.

Música que fala

A grande novidade desta montagem é a trilha sonora original executada ao vivo pelo pianista e compositor Ricardo Bacelar. “A música dialoga com a peça o tempo todo, como num filme”, descreve o músico. “Trabalhamos com valsas brasileiras e texturas contemporâneas para criar climas que variam do romântico ao angustiante”.

Bacelar, que já havia trabalhado com o grupo nos anos 1980, detalha o processo criativo: “É uma interpretação musical que segue cada respiração dos atores. Como Chaplin dizia, ‘a música nunca deve antecipar a emoção, mas sim reforçá-la no momento certo’”. O resultado é tão integrado que, segundo o pianista, “alguns atores chegam a esperar um acorde específico para dizer suas falas”.

Atemporalidade

Mais de seis décadas após sua criação, “O Beijo no Asfalto” segue perturbadoramente atual. A peça antecipou discussões sobre cancelamento, sensacionalismo midiático e moralismo que dominam nosso cotidiano digital. “O que mudou foi a velocidade com que uma notícia falsa pode destruir vidas”, reflete Hiroldo Serra. “Antes levava dias, hoje bastam minutos”.

Para o elenco, a experiência de mergulhar no universo rodrigueano é transformadora. “Nelson nos obriga a encarar o pior e o melhor da natureza humana”, diz Manoela Bacelar. “Seu texto é como um espelho que reflete não só quem fomos, mas quem ainda somos”.

A montagem cearense prova que grandes obras não envelhecem: apenas aguardam o momento certo para revelar novas camadas de significado. Em Brasil recheado de cancelamento e moralidade, “O Beijo no Asfalto” surge como convite irrecusável para refletir sobre como pequenos gestos podem desencadear em grandes revoluções — ou inomináveis tragédias.

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