Demolição do Muro Cinético, de Sérvulo Esmeraldo, chama atenção para falta de manutenção de obras artísticas em espaços públicos no Ceará

Com valor imensurável para a cultura de Fortaleza, a obra Muro Cinético, do artista Sérvulo Esmeraldo, voltou às manchetes após ser demolida. No local, foi colocado um gradeado de metal — solução prática, mas sem qualquer significado artístico. Além de causar indignação, ocorrido levanta questões sobre manutenção, conservação e valorização de obras de arte em espaços públicos. Dodora Guimarães, guardiã da obra de Sérvulo, e especialista falam ao Tapis Rouge sobre o caso e a necessidade de proteger artistas e suas criações

Onivaldo Neto
onivaldo@ootimista.com.br

Mais de 40 anos de presença artística e contribuição cultural a Fortaleza foram perdidas com a demolição da obra Muro Cinético, criada pelo icônico Sérvulo Esmeraldo (1929-2017). A peça, que circundava o Centro Administrativo Bárbara de Alencar (Caba) – antigo Banco do Estado do Ceará (BEC) –, foi colocada abaixo após avaliação técnica da Superintendência de Obras Públicas (SOP). O órgão considerou que a estrutura da obra estava comprometida, com risco de desabamento. Desde então, um gradil de metal comum cerca o complexo que acolhe os prédios do Governo do Estado e é tutelado pela Procuradoria Geral do Estado (PGE-CE).

Para além do dano à paisagem cultural de Fortaleza, o caso gerou consternação pela ausência de consulta prévia ao Instituto Sérvulo Esmeraldo (ISE), entidade responsável por zelar pelo legado do artista cearense. Em entrevista ao Tapis Rouge, a presidente do Instituto e viúva do artista, Dodora Guimarães, enfatizou a indignação com o ocorrido. “É inadmissível que um órgão governamental possa agir com tal truculência contra um patrimônio público. Evidentemente que a PGE-CE sabia o que estava destruindo. Ela sabia que se tratava de uma obra do artista Sérvulo Esmeraldo. Tanto que ela se dirigiu à Secult (…) E, infelizmente, a Secult também foi omissa, e, mais do que isso, deu as costas a uma obra de arte do Estado. Negando, também, a existência do processo de tombamento aberto na instituição”, comenta.

Ainda conforme Dodora, o ISE ainda não obteve acesso ao laudo técnico que identificou comprometimento e risco de desabamento da obra. “Não tivemos acesso a nada. Nem recebemos nenhum comunicado das instituições citadas. Fomos totalmente ignorados. Queremos ter acesso aos documentos citados, conhecer o parecer da Secult e de tais os setores competentes citados na Nota da PGE-CE”, relata. Procurada pela reportagem, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult Ceará) informou que, junto da PGE-CE, está em diálogo com a Dodora Guimarães.

Ao Tapis Rouge, a SOP se pronunciou por meio de nota: “A Superintendência de Obras Públicas (SOP) informa que realizou uma vistoria técnica a pedido da PGE, onde foram detectados problemas na estrutura do muro, parte sul, do Centro Administrativo Bárbara de Alencar (CABA), com risco de desabamento, representando perigo aos usuários da unidade administrativa e pedestres que transitam nas proximidades. Diante da urgência no reparo, a SOP providenciou a instalação de gradil metálico em todo o entorno do Centro Administrativo Bárbara de Alencar”.

Recorrência
O ocorrido com o Muro Cinético não é um episódio isolado na trajetória das obras de Esmeraldo. La Femme Bateau, provavelmente o trabalho mais conhecido do artista cearense, também acumula um histórico de falta de manutenção e danos ao longo dos anos. Em 2018, por exemplo, uma ressaca marítima arrancou a escultura de seu local de instalação na Ponte dos Ingleses, provocando avarias. A peça sofreu com a falta de reparos por anos, até ser reconstituída em aço inox e ser devolvida ao ponto turístico em junho de 2024. Contudo, um ano após voltar à Praia de Iracema, a obra foi danificada novamente por atos de vandalismo.

“São muitas as obras de arte destruídas no Ceará. A destruição aqui parece ser um projeto. São muitas as esculturas do Sérvulo destruídas, infelizmente. Monumentos como o dos 75 Anos do DNOCS, dos 30 Anos da Faculdade de Medicina da UFC, um painel mural da Assembleia Legislativa do Ceará (…) A falta de zelo com o patrimônio público, de toda ordem, é, infelizmente, generalizada. Precisamos mudar esta cultura urgentemente. Curioso é que nossos governantes e as elites gostam de viajar e pousar junto aos monumentos identificados como marcos civilizatórios”, provoca Dodora Guimarães.

Cartão postal de Fortaleza, outro monumento emblemático que padeceu por falta de manutenção foi a estátua Iracema Guardiã. Já desgastada pela ação do tempo, a obra de Zenon Barreto (1918-2002) tombou em maio 2022 após forte ventania, sendo reinstalada em julho do mesmo ano.

Olhar técnico
Em análise ao ocorrido, Rafael Vieira, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), critica a série de lacunas que permitiram a demolição da obra. “Do ponto de vista jurídico e de política cultural, o que mais me chama atenção não é apenas a demolição em si, mas o encadeamento de potenciais omissões institucionais, que vão desde a ausência de consulta a especialistas em conservação por parte dos que promoveram a demolição, à falta de transparência sobre os pareceres técnicos que embasaram a decisão no suposto ‘risco de desabamento’ e à inexistência de um procedimento formal de tombamento — mesmo após ter sido protocolado, em 2023, requerimento nesse sentido”, afirma o também integrante do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (IAUD/UFC).

Vieira refere-se à solicitação encaminhada por Dodora à Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) em dezembro daquele ano, pedindo o tombamento de 37 obras de Sérvulo Esmeraldo situadas em Fortaleza e nas cidades de Crato, Cruz e Quixadá. Em 2024, conforme informações divulgadas à imprensa, durante encontro com a então secretária da Cultura do Estado, Luisa Cela, a curadora reiterou o envio do requerimento e informou que o Instituto Sérvulo Esmeraldo teria condições de oferecer suporte para o trabalho de restauro. No entanto, passados quase dois anos, ainda não houve nenhuma devolutiva quanto ao pedido feito no documento, redigido por Romeu Duarte, arquiteto e docente da Universidade Federal do Ceará (UFC), e o designer gráfico Henrique Baima, especializado pelo Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC).

Sobre o assunto, Rafael Vieira acrescenta que a legislação de proteção do patrimônio cultural no Brasil parte do princípio de que o ato acautelatório — ou seja, medida preventiva de proteção — deve prevalecer sempre que houver indício de valor cultural relevante. Nesses casos, segundo o profissional, cabe à Administração Pública acionar os instrumentos de tutela previstos constitucionalmente, como inventário, tombamento e outras formas de acautelamento, conforme estabelece o art. 216, §1º, da Constituição Federal. “No plano federal, o Decreto-Lei n. 25/1937 estabelece que, uma vez iniciado o processo de tombamento, o bem já se encontra sob tombamento provisório, com efeitos equiparados ao tombamento definitivo, ressalvadas questões registrais [art. 10 e parágrafo único]”, completa.

Mesmo reconhecendo que ainda não havia um tombamento provisório juridicamente perfeito — uma vez que não teria ocorrido a notificação formal prevista na legislação e na interpretação do Conselho da Justiça Federal (CJF) —, Vieira ressalta que isso não exonera o Estado do dever mínimo de prudência diante de um bem publicamente reconhecido como relevante e cujo pedido de proteção havia sido instruído por especialistas.

“A demolição sem consulta ampla a especialistas e sem que o pedido de tombamento tenha sido minimamente processado sinaliza um déficit de governança patrimonial. Não é apenas uma ‘decisão técnica de engenharia’, é uma escolha política sobre o que merece ou não ser preservado, e essa escolha, aqui, foi tomada sem os filtros devido-legais e técnico-culturais que a Constituição exige para o meio ambiente cultural”, arremata.

Perdas e esperança
Por fim, o especialista avalia que, do ponto de vista simbólico, a substituição do Muro Cinético de Sérvulo Esmeraldo por um gradil metálico padronizado sintetiza visualmente um certo projeto de cidade — cada vez mais “controlada”, mas também menos significativa, menos singular e menos democrática em relação à memória coletiva. Para ele, a arte pública moderna nasce justamente da compreensão de que a cidade não se limita à infraestrutura: ela também é linguagem, experiência estética e um espaço de educação do olhar. “Quando esse espaço é ocupado por soluções ‘de catálogo’ [grades, barreiras, etc.], o que se comunica é que gestão predial e segurança física prevalecem completamente sobre a dimensão simbólica e cultural do lugar. Em termos de política cultural, a mensagem implícita é perigosa: obras modernas e contemporâneas são percebidas como supérfluas, substituíveis por qualquer solução funcional. Isso fragiliza o argumento para a proteção de todo um ciclo da produção artística cearense”, frisa Rafael Vieira.

“Esperamos que sejam honestos e cumpram o dever moral de reconstrução do Muro Cinético. Temos as informações e a maquete do projeto, quer dizer: o necessário para a sua reconstrução”, completa Dodora Guimarães.

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