Na reta final, “Vale Tudo” faz sucesso com vilã protagonista, excesso de publicidade e metade das tramas já encerradas

Na reta final, “Vale Tudo” tem mais publicidade do que histórias interessantes no ar e deixa pontas soltas que o telespectador já até desistiu de tentar juntar, mesmo com um elenco de peso

Danielber Noronha
danielber@ootimista.com.br

A TV Globo completou 60 anos em 2025 e a escolha para celebrar a efeméride foi também a mais arriscada: lançar um remake de “Vale Tudo” (1988) – grande clássico da teledramaturgia brasileira. Inicialmente, a premissa parecia instigante: fazer atualizações necessárias em algumas histórias mais de 30 anos depois, além da oportunidade de ver novamente personagens que se tornaram icônicos no imaginário do telespectador.

A poucas semanas do fim, não é, portanto, precipitado dizer que a nova versão escrita por Manuela Dias falhou nas duas premissas e outras mais que se propôs a fazer. O que se viu foram dramas rasos e pouco verossímeis, dando a impressão de serem esquetes soltas – como se fossem duas ou mais novelas se desenrolando paralelamente.

A nova Raquel, vivida por Taís Araújo, virou uma mera coadjuvante, embora – justiça seja feita – a atriz tenha agarrado todas as raras oportunidades para entregar boas sequências; a versão influencer da ambiciosa Maria de Fátima, interpretada por Bella Campos, ganhou um perfil real nas redes sociais, angariou fãs, fechou publicidades, mas, lá pelas tantas, também ficou sem rumo na trama, esquecendo até como segurar o celular para gravar vídeos.

As duas figuras compõem apenas a ponta de um iceberg de boas ideias e péssimas execuções acumuladas no remake. Isto sem considerar a extensa lista de personagens que, como se brinca nos memes das redes sociais, poderiam ter sido resumidos apenas em um e-mail.

“Pobre de quem não sabe voar”
Quem não abandonou a novela e aguentou até aqui, teve que exercitar bastante a suspensão da descrença – ato de suspender o pensamento crítico e a lógica para aceitar a fantasia das obras ficcionais. Não foram poucas as tentativas de minar a boa vontade do espectador: como quando Raquel teve que fechar a Paladar em um dia, após uma armação de Odete Roitman (Débora Bloch), voltou a vender sanduíche na praia, e, dois capítulos depois, conseguiu reaver o controle da empresa.

Também pudera! Já havia dia marcado para ir ao ar um merchandising de gás de cozinha e cabia à personagem de Taís fazer a inserção do produto na trama. Esta, aliás, é outra grande fragilidade do remake. Não bastasse a quantidade absurda de publicidades, elas ainda são colocadas dentro dos contextos mais improváveis, como a do sabão líquido, exibida na quarta-feira (1º), em um diálogo entre Afonso (Humberto Carrão) e Solange (Alice Wegmann), logo após ele descobrir um irmão desaparecido, que havia sido dado como morto e retornara trazendo a chance de cura para o câncer que ele está enfrentando.

Foram tantos produtos anunciados, inclusive mais de uma vez por capítulo, que o folhetim ganhou apelidos como “Vende Tudo” e “Vale Publi”. As mais de 80 inserções comerciais, renderam o posto de produção mais rentável da história da emissora. Análises mercadológicas à parte, o excesso atrapalha, inclusive, o arco de alguns personagens, como o Ivan Meireles de Renato Góes, que enfrentou dificuldades financeiras após ser demitido da empresa de Odete, mas desfila com uma picape que pode chegar a custar R$ 680 mil.

O novo sucesso

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Elenco afinado é um dos pontos altos da produção (Foto: Globo/Divulgação)

Apesar dos problemas, “Vale Tudo” pode, sim, ser considerada um sucesso. Em tempos digitais, até as críticas se traduzem em ganhos. Apesar de um início tímido, o folhetim foi ganhando espaço em perfis de humor nas redes sociais, replicando as falas de Odete Roitman e ali era plantada a semente do fenômeno que se vê hoje. Influenciadores produzindo conteúdo sobre os trajetos de Raquel, os reviews dos capítulos, as críticas com doses de humor, está tudo na For You do TikTok e no Explorar do Instagram.

Em números, o remake tem conseguido ultrapassar os 30 pontos de audiência – marco cada vez mais raro –, além de ter se tornado a telenovela mais vista do streaming Globoplay, ultrapassando o remake de “Pantanal” (2022).

Para além dos feitos – bons e ruins –, o maior trunfo de “Vale Tudo” está em um quesito que vinha sendo pouco considerado pela própria emissora: o elenco. O time é estelar e foram poucos os nomes que não casaram como uma luva nos respectivos personagens. No elenco principal, todos entregam o que prometem e mais, com destaque especial para Malu Galli, que interpreta Celina, Paolla Oliveira (Heleninha) e Alexandre Nero (Marco Aurélio). Entre os que estão no segundo escalão, Belize Pombal (Consuelo) e Carolina Dieckmmann (Leila) entregaram personagens femininas potentes, carismáticas e com muitas outras camadas do que as da versão original. No fim, foi por estes rostos que compensou acompanhar a novela até aqui, mas o remake, sem dúvidas, poderia ser de outra monta.

A dona da história

Émerson Maranhão
emerson@ootimista.com.br

Para o bom espectador, um capítulo basta. Exibido na última quinta-feira (2), o episódio 160 da novela “Vale Tudo” é uma perfeita síntese dos rumos que o remake tomou. Os 46 minutos e 27 segundos de duração foram dedicados exclusivamente para informar ao público um dos principais segredos da trama até este ponto: Odete Roitman (Débora Bloch) mentiu deliberadamente sobre o acidente que vitimou seu filho Leonardo (Guilherme Magon); a repercussão desta descoberta e como ela fornece possíveis motivações para o assassinato da vilã, que deve ir ao ar no capítulo da próxima segunda-feira (6).

Em nenhuma das cenas a personagem Raquel Acioli, suposta protagonista da trama, sequer foi citada. Sua ausência num dos ápices dramáticos do folhetim não fez a menor falta, tanto que nem foi sentida ou causou estranhamento. Isso porque o fato não é isolado. Há muito, a saga da guia de turismo honesta roubada pela filha inescrupulosa e seus desdobramentos deixaram de mover a história.

O que permite afirmar, sem risco de incorrer em erro, que na versão escrita por Manuela Dias o protagonismo de “Vale Tudo” saiu das mãos de Raquel. A duas semanas da exibição do último capítulo, a personagem interpretada por Taís Araújo não tem mais nenhum conflito a ser resolvido. Até o tradicional “happy end” com seu par romântico, o administrador Ivan Meireles (Renato Góes) já foi antecipado. Aliás, este também é um personagem que perdeu muito na versão atual. E ainda que anunciadas subtramas em que Raquel terá participação nos próximos e derradeiros capítulos – como o sequestro de Maria de Fátima (Bella Campos) – não é sua ação que impulsionará o desenrolar da narrativa. Ou seja, se a personagem sumisse hoje não faria a menor diferença.

À guisa de comparação, na versão original da trama, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e exibida pela mesma emissora entre maio de 1988 e janeiro de 1989, o mesmo grande segredo de Odete (Beatriz Segall) é revelado por Raquel (interpretada por Regina Duarte). É a “mocinha” da novela que investiga o passado da vilã, encontra sua antiga empregada e pessoalmente a leva até uma reunião na presidência da TCA para desmascarar a rival, em atitude clássica de protagonismo.

Sedução do mal

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Débora Bloch conseguiu o feito raro de construir uma vilã protagonista (Foto: Globo/Fábio Rocha/Divulgação)

Ao tempo onde o esvaziamento da personagem Raquel é inegável, salta aos olhos a soberania de Odete na dramaturgia desta nova versão. Sim, de antagonista ela passou a protagonista da novela, não há dúvidas. Fazendo uma analogia com Raquel, é a vilã que move a trama, através de conflitos estabelecidos com vários personagens – Maria de Fátima, Marco Aurélio, César Ribeiro, Heleninha, Afonso, Celina, para citar só alguns. Tanto que a partir da próxima semana, o que movimentará “Vale Tudo” até o seu fim, basicamente, será descobrir quem matou a personagem, que continuará “ativa” mesmo depois de morta.

Curiosamente, o único outro desfecho a ser resolvido será o da aprendiz de vilã Maria de Fátima, a outra antagonista oficial da novela. Raquel e Ivan já estão com a vida ganha, digamos assim; ninguém duvida que o transplante de Afonso será bem-sucedido; os moradores da vila já não têm mais conflitos a definir; e o fim de Marco Aurélio e Leila já foi anunciado.

Também é fato que muito do sucesso desta Odete Roitman deve-se à excelência com que Débora Bloch deu vida à personagem. Indubitavelmente, este era um dos maiores desafios postos na realização do remake. A Odete original de Beatriz Segall tem lugar de destaque na galeria das maiores vilãs da teledramaturgia nacional e as comparações seriam e foram inevitáveis. Mas, a versão de Bloch ganhou vida e brilho próprios, com uma potência tanto inédita quanto inesperada.

E é neste ponto que há que se reconhecer a também excelência do trabalho de Manuela Dias na criação da personagem. Criadora e criatura se encontraram em raro e especial momento, tanto para a autora quanto para a atriz. A naturalidade e o charme com que a acidez dos textos de Odete saía da boca de Débora Bloch são evidência do quanto essa união foi feliz. Dificilmente Manuela teria uma Odete tão sedutora e pujante se a outra atriz fosse dada esta missão.

O resultado é uma personagem que já se tornou um clássico. Tanto que virou o jogo e assumiu o protagonismo de uma trama amplamente conhecida e amada, sem causar rejeição dos espectadores. Pelo contrário. Um feito incomum, mas à altura de Odete.

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