Luiz Fernando Carvalho fala sobre adaptação para os cinemas de A Paixão Segundo G.H.

Com trabalho consagrado na TV e no cinema, o diretor e roteirista Luiz Fernando Carvalho mergulha no universo de Clarice Lispector ao adaptar para as telas o complexo romance A Paixão Segundo G.H. O filme acaba de estrear em circuito comercial

Émerson Maranhão
emerson@ootimista.com.br

A tarefa não é das mais fáceis. Pelo contrário. É missão hercúlea traduzir em imagem em movimento e som a densidade dramática de A Paixão Segundo G.H., um dos mais herméticos romances de Clarice Lispector e também um dos mais elogiados pela crítica especializada. Mas é a esta missão que o diretor e roteirista Luiz Fernando Carvalho se entrega e cujo resultado acaba de chegar aos cinemas do País, no longa-metragem homônimo, protagonizado por Maria Fernanda Cândido.

No filme a atriz dá vida a G.H., escultora da elite de Copacabana, que, após o fim de uma paixão, decide arrumar seu apartamento, começando pelo quarto de serviço. No dia anterior, a empregada pediu demissão. No quarto, G.H. se depara com uma enorme barata que revela seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive sua via-crúcis existencial.

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O filme é protagonizado por Maria Fernanda Cândido (Foto: Divulgação)

“Tenho grande interesse em filmar o que se considera infilmável”, define Carvalho, em entrevista exclusiva ao O Otimista, por telefone. “Na verdade, quando se estabelece que existe o ‘infilmável’ parte-se do pressuposto que exista um ‘filmável’. O que seria esse ‘filmável’? A meu ver, é um padrão, um modelo previamente estabelecido pelo mercado cinematográfico. Isso, definitivamente, não me interessa”.

De fato, Carvalho é habituado a levar para as telas – tanto do cinema quanto da televisão – projetos à primeira vista pouco vocacionados para o audiovisual. Desde sua estreia na Sétima Arte, com o curta A Espera (1986), inspirado em um capítulo do livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, do semiólogo francês Roland Barthes, ao seu primeiro longa, Lavoura Arcaica (2001), baseado no romance de Raduan Nassar, escritor brasileiro de ascendência libanesa. Ambos os filmes premiadíssimos e aclamados pela crítica.

Curiosamente, a intenção de levar as telas a história de G.H. começou nos bastidores de Lavoura Arcaica. “No livro de Raduan há um personagem, Ana (interpretado no cinema por Camila Morgado), que atravessa toda a história em silêncio. Ela não diz uma palavra. E assim foi no filme, também. Mas eu precisava de uma métrica para o silêncio de Ana. Não poderia ser um silêncio vazio”, conta o cineasta. “E eu encontrei essa métrica em trechos de A Paixão Segundo G.H. Gravei com minha voz estes trechos e usei como referência nas cenas de Ana. Obviamente, retirei esse áudio na montagem final, mas a métrica está lá, em cada uma das cenas. E foi daí que surgiu a ideia de filmar A Paixão…”.

Para Carvalho, apesar de ter sido lançado em 1964, há seis décadas portanto, o livro de Clarice Lispector é atualíssimo. E muita da sua força vem daí, segundo ele, desta capacidade de estabelecer uma conexão com questões contemporâneas. “Parece que ela (Clarice) está falando do que vivemos hoje. É um texto muito moderno e radical”, pontua. “Para mim, é uma grande crítica ao patriarcado, à sociedade machista, colonialista, imperialista em que estamos. E pensar que ele foi escrito em plena ditadura militar”.
Ainda que tenha acabado de ser lançado em circuito comercial, A Paixão Segundo G.H. é um projeto que começou há mais de uma década. O filme venceu o edital de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura em 2014. Três anos depois, foi iniciado o trabalho de preparação de equipe e elenco, que consumiu um ano, realizado em um galpão em São Paulo. As filmagens ocorreram em 2019. “Para mim, o processo é fundamental. Não distingo nem hierarquizo o processo, a filmagem e a montagem. Para mim, as três são etapas fundamentais e inseparáveis”, amarra Carvalho.

Televisão

Além da bem-sucedida carreira no cinema, Luiz Fernando Carvalho é responsável por obras que entraram para a história da TV brasileira, quer seja pela sofisticação de linguagem quer seja pela ousadia estética que seu trabalho apresenta. Levam sua assinatura as novelas Renascer (1993), O Rei do Gado (1996), Meu Pedacinho de Chão (2014) e Velho Chico (2016), todas lembradas pelo apuro imagético que apresentaram, com o uso recorrente de sequências muito próximas do cinematográfico.

Também foram dirigidas por Carvalho as séries Os Maias (2001), Hoje é Dia de Maria (2005), Capitu (2008), Alexandre e Outros Heróis (2013) e Dois Irmãos (2017), entre outras. Muitas das quais também adaptações literárias da obra de grandes nomes como Graciliano Ramos, Eça de Queiróz, Machado de Assis e Milton Hatoum.

“Acho que a televisão aberta tem uma grande responsabilidade social, afinal de contas é uma concessão pública”, explica Carvalho. “Sempre que dirigi para a televisão tive em mente que era uma oportunidade de levar cultura para aquela pessoa que não tem condição de ir a um museu, de viajar, de ir à opera, de ir a bibliotecas, de ir a exposições, de frequentar o teatro…”.

Mas como levar esse nível de sofisticação para uma TV aberta, geralmente pautada pela estética dos blockbusters e afins?, insiste o repórter. “Acho que consegui fazê-lo através das ranhuras existentes. Das frestas. Sempre trabalhei por obra, nunca fui um funcionário. E fiz os projetos que entendi serem necessários… Nunca perguntei se podia, e nunca me disseram que não poderia. Só fiz”.

 

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