Em ‘Renaissance’, Beyoncé traz um álbum dançante, mundano, celebrativo, mas que representa uma necessidade quase geral de esquecer dos problemas
Sâmya Mesquita
samya@ootimista.com.br
Diz-se no mundo pop que, depois de um álbum conceitual e espiritualmente expressivo, o trabalho seguinte de um artista é mais mundano, celebrativo. Foi assim com Madonna, na transição de American Life (2003) para Confessions on a Dance Floor (2005), e com Lady Gaga, mudando a vibe de Joanne (2016) para Chromatica (2020). Beyoncé parece experienciar essa necessidade artística de apenas… aproveitar a vida! E o momento em que vivemos sustenta que ‘Renaissance’, sétimo álbum da cantora, é o clamor de uma era cansada da realidade.
Já são seis anos desde o grito de ‘Lemonade’, álbum que explicitou ainda mais a necessidade da Queen-Bey em falar de questões sociais, como racismo, sexismo e violência policial. Mas ela não parou: ‘Everything Is Love’ (2018), álbum colaborativo com o esposo Jay-Z, é um ode às vitórias conquistadas, mesmo com a estrada sendo mais difícil para pessoas negras; ‘The Lion King: The Gift’ (2019) trouxe, num apoteótico trabalho cinematográfico, as origens orgulhosas daqueles que foram escravizados nas Américas.
Agora, a ex-Destiny’s Child traz um álbum dançante, mundano. Mas engana-se quem pensa que ela esqueceu de toda essa batalha anterior: ainda está lá, em cada faixa. ‘Renaissance’ apenas representa a extrema necessidade de esquecer dos problemas.
Lembrando que Beyoncé sempre quebrou padrões e continua rompendo expectativas. Em uma época que se escolhia apenas algumas faixas de um lançamento para fazer clipes, ela veio com um clipe para cada faixa em ‘Beyoncé’ (2013). E quando todo mundo esperava vários clipes, ela veio com uma produção audiovisual em ‘Lemonade’ (2016). Agora, quando se pensa em um espetáculo cinematográfico, ela vem com um trabalho apenas musical, dividido em três partes – a primeira sendo o ‘Renaissance’.
A representação de uma época
Particularmente, não sou fã da estética dos anos 70, mas devo confessar que tem o seu encanto – e importância. Aquela década foi marcada por dificuldades financeiras em todo o mundo. E o espírito geral de uma época de Guerra Fria, cheia de dificuldades financeiras, era o de fuga: celebração pelo simples fato de estar vivo. Isso foi incorporado por discotecas, roupas cheias de brilho, cabelos esvoaçantes e saltos gigantescos.
Para quem acompanha os lançamentos da música desde o ano de 2020, o pop tem trazido essas referências setentistas. ‘Future Nostalgia’ da Dua Lipa, ‘After Hours’ de The Weeknd e ‘Planet Her’ de Doja Cat são alguns dos vários exemplos de produções que trazem essa energia. E ela não é aleatória: foi em 2020 que estourou no mundo a pandemia de Covid-19. Muitos precisaram ficar em casa, isolados, por meses a fio.
É de consenso geral que a pandemia conteve comemorações. E agora, que as vacinas estão salvando vidas, as pessoas querem apenas comemorar. Beyoncé entendeu isso e trouxe ao mundo o primeiro de três atos celebrando a vida que continua, resiste, apesar de todas as dificuldades.
“Com todo o isolamento e injustiça do ano passado (referindo-se à morte de George Floyd em uma abordagem policial em Minnesota, EUA), eu acho que nós estamos prontos para escapar, viajar, amar e rir de novo. Sinto um renascimento emergindo e eu quero fazer parte disso nutrindo esse escapismo de qualquer forma possível”, comentou a artista em entrevista à Harper’s Bazaar, no fim de 2021.
Análise do álbum
Em 16 faixas, a principal mensagem do álbum é a autoaceitação, orgulho de ser quem é e da estrada até aqui. Beyoncé não só traz as referências dos anos 70 com arranjos que lembram aqueles usados exaustivamente nos anos 70, mas também deixa claro que ela, como artista, é a somatória de todas as suas “eras”. Ela soma o hit “Crazy in Love” (2003) até o country de “Daddy Lessons”, mostrando que ainda não se esgotou em referências e que ainda pode se reinventar.
‘Renaissance’ parece uma grande faixa, com atos diferentes. E neste caso, não é uma característica ruim. É como se você estivesse numa discoteca: a música não para e o DJ quer rechear a pista com gêneros musicais dançantes, mas diferentes.
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Análise por faixa
I’m That Girl: A primeira faixa do álbum apresenta uma atmosfera de celebração. Ainda que melódica como boa parte das músicas de ‘Lemonade’, mostra a extrema necessidade de apenas dançar. E avisa: “‘eles’ não estão me impedindo”.
Cozy: É um grito de auto aceitação dentro da própria pele; de entendimento que, independente da cor da pele, você pode se amar.
Alien Superstar: Afro futurista, remetendo a ‘The Lion King: The Gift’, mas com referências aos clubes de Nova Iorque, especialmente os LGBTQIA+ que traziam competições de drag queens (Lembrou da série ‘Pose’?). Com grandes propensões de virar a queridinha dos Bey Hive.
Cuff It: Música de discoteca por excelência, em que o eu-lírico experimenta uma paixão de balada na pista de dança. Lembrando que a capa do álbum, em si, remete ao Studio 54, famosa discoteca de NY.
Energy: Em parceria com o jamaicano Beam, essa música apresenta uma batida mais afrobeat, semelhante ao visto no álbum de O Rei Leão. Aqui, vemos a Queen-Bey rapper que ficou mais constante em suas músicas de 2016 para cá.
Break My Soul: Não é à toa que foi escolhida como primeiro single. A faixa tem os pontos altos do álbum, tanto na musicalidade quanto no tema da autoaceitação.
Church Girl: As referências musicais da pequena Beyoncé Giselle, a garota texana, são fortes aqui. Mas, particularmente, essa música me emocionou, principalmente em relação às especulações que já circulam na internet. “Você está fazendo o trabalho de Deus” pode ser uma referência ao perdão que a cantora deu ao marido, Jay-Z, após a polêmica em torno de uma suposta traição.
Plastic Off the Sofa: É possível sentir um pouco de Diana Ross, cantora símbolo dos anos 70, com Beyoncé tomando para si o papel da diva disco. Se fosse em uma discoteca, esse seria o momento para dançar colado com o “crush”.
Virgo’s Groove: Pessoalmente, minha preferida, pois possui camadas e nuances completas e complexas por si só. O título faz referência ao signo da cantora e a faixa, em menos de 24 horas, já foi eleita ‘Best New Track’ pelo site de crítica musical Pitchfork.
Move: A música feita em parceria com a cantora jamaicana Grace Jones e a nigeriana Tems é o puro suco do R&B. Instantaneamente, lembrei de ‘Lose My Breath’, do Destiny’s Child, e tudo o que o trio representou nos anos 2000.
Heated: Retoma o tema da autoestima e do empoderamento, sob uma incrível mistura do pop contemporâneo feito no continente africano com tudo que já se conhece das produções de Bey.
Thique: Lembra ‘Partition’, do álbum ‘Beyoncé’ e não dá voltas quando o assunto é falar da própria sexualidade. Os sussurros graves e marcantes do início dão lugar a uma batida dançante, bem ao estilo house music.
All Up in Your Mind: Assim como ‘Thique’, Beyoncé entrega um pop dos anos 2010, simplesmente. Aquela música que agita a festa e faz todo mundo bater cabelo.
America Has a Problem: Para mostrar que as músicas não se esvaziam e o álbum é constante em qualidade, essa é uma das melhores faixas do trabalho. Retoma o Miami Bass, subgênero do hip hop que é a base para o nosso funk brasileiro.
Pure/Honey: Uma colcha de retalhos de samples e ritmos: traz uma faixa dançante, que explora a versatilidade da tessitura vocal de Beyoncé.
Summer Renaissance: Um final ousado que encerra a experiência com chave de ouro. A atmosfera é mesmo de Renascença, de valorização da humanidade e de toda a materialidade da existência. A batida ballrom remete às músicas hipnotizantes de Donna Summer. Mas o final, que enumera diversas grifes de luxo, não me faz pensar em outra música a não ser ‘Vogue’, de Madonna, que, apesar de ser dos anos 90, enaltece o luxo de grandes nomes.
Nota: 9/10
Ouça o álbum completo: