60 anos de Deus e o Diabo na Terra do Sol: cineastas comentam a importância da obra-prima de Glauber Rocha

Obra-prima do Cinema Novo brasileiro, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ completa seis décadas de lançamento hoje (10). Ao Tapis Rouge, cineastas cearenses falam da importância e da atemporalidade do longa, que segue sendo referência fundamental para o cinema nacional

Há 60 anos, em 10 de julho de 1964, entrava em circuito comercial no Brasil o longa-metragem Deus e o Diabo na Terra do Sol, segundo filme de Glauber Rocha, então com apenas 25 anos. A produção havia sido destaque no Festival de Cannes do ano, não apenas projetando o Brasil nas salas de cinema internacionais, mas criando uma identidade vanguardista só nossa.

O enredo conta a história de Manuel (Geraldo Del Rey) que, ao lado de Rosa (Yoná Magalhães), se livra do do patrão explorador (Mílton Roda) e se junta aos fanáticos liderados pelo profeta São Sebastião (Lídio Silva). O casal vê que o fundamentalismo religioso é apenas mais uma forma de manipulação; é quando eles se juntam ao bando do cangaceiro Corisco (Othon Bastos) e passam a viver da violência. Manuel e Rosa experimentam um verdadeiro purgatório, entre a vontade de superar as dificuldades e a impossibilidade de se opor a um sistema que os impede de vencer na vida. O filme é um marco do Cinema Novo, movimento cinematográfico brasileiro que se destacou pela crítica à desigualdade social.

Ao Tapis Rouge, o cineasta Rosemberg Cariry falou da importância do longa para o cinema mundial. “Deus e o Diabo na Terra do Sol está entre os 100 filmes mais importantes já realizados no mundo. É uma obra de grande ousadia estética e criativa, com um discurso político forte e necessário naquele momento histórico”, afirma o diretor de outro clássico, Corisco & Dadá (1996).

Ele também ressalta que a obra influenciou todo o cinema brasileiro e além. “São muitos os cineastas pelo mundo que confessam o impacto que sentiram ao ver essa obra-prima. Também fiquei totalmente tomado pelo espírito desse filme quando o vi”.

Dialética
Deus e o Diabo explora a dialética das relações: a forma como Bem e Mal não apenas se contrapõem, mas se complementam, em uma eterna dança de transformações que marcam a existência humana. Isso transparece desde as dicotomias entre o messianismo de Sebastião versus o banditismo de Corisco até a simbologia da profecia de que “o sertão que vai virar mar”.

Para o escritor, roteirista e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Firmino Holanda, o longa é um insuperável épico divisor de águas do cinema brasileiro. “Dentre as obras fundadoras do Cinema Novo, Deus e o Diabo é a mais radical. Ela promove um choque de gêneros, indo de um ligeiro neorrealismo, do qual Glauber era crítico, ao teatro dialético de Bertolt Brecht, passando por Sergei Eisenstein (O Encouraçado Potemkin) — e tudo isso banhado pela música nacionalista de Heitor Villa-Lobos”, explica o pesquisador, que está escrevendo um livro sobre a dialética brechtiana.

Gerações futuras
Para Firmino Holanda, que acompanha a nova geração de cineastas cearenses, há um público que entende a atemporalidade da obra de Glauber Rocha. “Eu sei, e Glauber também sabia, que as plateias, letradas ou não, são colonizadas pelo lixo hollywoodiano e congêneres. Vejo que o gosto de hoje elege Tropa de Elite e Cidade de Deus como modelos de excelência do cinema brasileiro. No cenário neofascista recente, prefere-se tais filmes reacionários para se proferir sentenças sobre nossa realidade. Mas sei, sobretudo, que para se entender o Brasil tem que se passar pela obra épica e dialética de Glauber, que atravessa décadas sendo estudada e redescoberta em novas nuances”, diz.

Rosemberg Cariry acredita que é importante que as novas gerações de cineastas conheçam e estudem o filme de Glauber Rocha, enquanto criam seu próprio repertório. “Acho de fundamental importância que os estudantes de cinema estudem esse filme e, a partir dele, conheçam mais sobre o Brasil profundo e as perspectivas políticas populares. Se fosse novamente lançado, acredito que continuaria tão vivo e forte como na época da sua estreia. Esse filme tem o segredo dos bons vinhos. Melhora com o tempo. É um patrimônio da cultura brasileira”. Afinal, como o próprio Glauber Rocha diz, para produzir um filme o importante é: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”.

O que cineastas cearenses pensam de Deus e o Diabo na Terra do Sol

Wolney Oliveira (Os últimos cangaceiros) — Quando eu era aluno da Escuela Internacional de Cine y Televisión (em Cuba), era o filme mais disputado pelos alunos, né? E pessoalmente, pra mim, é um filme que eu sempre admirei pelo conjunto do que representa o filme: uma fotografia belíssima, atuações fenomenais e trilha sensacional do Sérgio Ricardo.

Glauber Filho (Bate coração) — A gente tem que compreender que a cinematografia do Glauber, o que é natural na sua autoria, se diferencia de uma estética geral do Cinema Novo. Lógico que compõe o Cinema Novo, mas tem um diferencial de filmes barrocos com um caráter política, o que torna as obras dele únicas. Então, nesse sentido, Deus e o Diabo na Terra do Sol acaba sendo extraordinário na sua representatividade cultural, social, política e estética.

Deo Cardoso (Cabeça de Nêgo) — É um filme que nos ensina a fazer um outro cinema: um cinema rebelde, sincero, sem muitos rodeios, que nos faz pensar nossa brasilidade profunda, tanto em sua estética quanto em sua forma de ser simples, popular e erudito. Esse filme é de fundamental importância para todos os cineastas brasileiros, latino-americanos, subdesenvolvidos, que ainda estão nessa peleja, nessa luta contra contra o capitalismo desumano.

Halder Gomes (Vermelho Monet) — Eu acho um lindo recorte da ambivalência e da brutalidade e da poesia do sertão. Acho um filme ainda moderno, visceral e importante, que vai continuar sendo muito estudado pelas próximas gerações.

RELACIONADOS

PUBLICIDADE

POPULARES